sábado, 17 de janeiro de 2009

Capítulo Quatro - Conforte-me com Maçãs

(da saga sobre comida)

“Sustente-me com passas,
conforte-me com maçãs,
porque desfaleço de amor”

Cântico dos Cânticos

Em seu livro, Ruth Reichl descreve uma receita de cogumelos que diz ser perfeita para quem precisa de consolo. Durante o outono inteiro a sopa serviu de conforto a uma mulher que perdera o pai, separava-se do marido e lidava com uma mãe maníaco-depressiva falida, a beira de um abismo. Apesar do título do livro, Reichl conforta-se com cogumelos. Já eu, mantenho-me fiel, e conforto-me mesmo é com maçãs. Minha mãe, ao parar de trabalhar, passou por todo o tipo de fases. Achou que teria todo o tempo do mundo para fazer suas coisas, mas logo tornou-se absorta por seus projetos para futuro e percebeu que não tinha tempo pra nada.
Uma de suas fases foi a da cozinha. Estava sempre com desejos de comer este ou aquele prato diferente, e a cozinha sempre cheirava maravilhosamente bem. Adorava quando falava-me de receitas que fazia quando morou na Austrália, ou das coisas que comia quando era criança. De algum modo, a receita de Apple Crispy entrou em nossa conversa, e como tudo o que tínhamos na cozinha eram maçãs e o absolutamente necessário para fazer a torta, decidimos testá-la.
Era novembro, mas ainda estava frio. Chovia fino lá fora, uma chuvinha chata, tocada à vento, e eu podia ouvir o barulho do tempo. O relógio tiquetaqueando enquanto eu tentava ler. Andava triste com não sei o quê. Quando uma amiga nossa chegou e os cachorros começaram a latir, eu ainda estava no banheiro tentando consertar o que sobrara do meu cabelo. Ele costumava ser uma massa sem brilho amontoada em minha cabeça, até que resolvi mudar. Ele estava simplesmente espetacular depois do primeiro corte, mas três meses depois, quando voltei ao cabeleireiro com a intenção de copiar o antigo corte, o resultado foi simplesmente um desastre.
Conversa vai, conversa vem, e eu, assim como o dia lá fora, continuava cinza. Eramos três, sentadas à mesa da cozinha, quando olhei para as maçãs e decidi que aquilo ipoderia ficar divertido. Todas concordamos que fazia a temperatura ideal para um café com torta, e lá fui eu cozinhar. Comecei a preparar a massa e tudo corria bem, até a hora de descascar as frutas. Cortei-me na maçã número um e lá pela maçã número três eu desisti. Elas se pareciam com algo disforme, com pedacinhos de casca vermelha ao redor.

Chamei minha mãe para ajudar, e ao dar uma olhada no caos que me rodeava ela irrompeu em risos. Logo éramos três Amélias, apoiadas no mármore da pia a fofocar, descascar maçãs e untar assadeiras. Esperamos a torta ficar pronta, e ao provar o primeiro pedaço, já havia me esquecido da tristeza, e o desastre que habitava minha cabeça parecia agora insignificante.
Era como sentir o gosto de um abraço, e o sabor daquela torta inundou a casa inteira e a nós três. Ao chegar no fim da torta, estava com calor, completamente consolada e alegre. O dia não parecia mais triste, e sim aconchegante.
Repeti a receita quase um ano depois, quando fiquei sabendo que uma amiga se mudaria de colégio. Achei que ela precisaria de conforto. Quando ela veio me ver e a torta ficou pronta, dei a primeira garfada e o gosto de maçã, canela e noz-moscada invadiu minha alma, percebi que quem precisava de conforto, mais uma vez, era eu. E foi incrível como a torta funcionou.

Um comentário:

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